Eu morri algumas vezes durante minha vida.
Foram mortes reais, no sentido de que um ‘velho ser’ escoou
pelo sumidouro do espaço e do tempo. Mas, um novo ser que estaria por vir não
chegou de repente; primeiro foi preciso experimentar um sentimento de vazio,
por vezes tão intenso que parecia não ter fim. Porém, à medida em que ia
nascendo o novo ser, de dentro para
fora, o vazio ia ficando preenchido com a vida que, firme, florescia.
Nos quase sessenta anos que tenho tido a oportunidade de
estar aqui, vivendo entre os séculos XX e XXI, nunca observei a vida punindo
ninguém, mas ensinando, ou melhor, oferecendo sempre a oportunidade de
renovação e mudança. Esta percepção, no entanto, pode estar vinculada à forma
como se vê a própria vida: se dela se crer que exista um princípio de punição e
suas nefastas decorrências, talvez não haja muito o que esperar de bom. É
possível que aí esteja a diferença entre a vida e a morte.
De pessoas que conheci, e das vivências que experimentei
principalmente aquelas nas quais os desvios morais foram responsáveis por gerar
sofrimento, nunca, em nenhuma oportunidade, observei haver punição, mas sempre o
movimento
para aprender, de se desenvolver aspectos essenciais no âmbito da
intimidade do ser que, em primeira e última instância, eram precisamente
decorrentes dos ajustes necessários para que acontecessem as transformações que
somente a vida tem em segredos que vão se revelando em nosso cotidiano.
Certa vez sonhei que eu estava sendo ‘afinado’, como se eu
fosse um instrumento de cordas sobre o qual uma mão poderosa, mas muito
delicada, cuidava de me calibrar! Era um momento de sofrimento, sem dúvida, mas
que a seguir se mostrou prodigioso com as oportunidades de renovação que trouxeram
à minha vida, à visão de mundo e à capacidade de intervenção que nele passei a
ter. Isto, para citar um único exemplo.
Este breve depoimento não deve ser encarado como se eu
tivesse a intenção de querer ensinar alguém, pois não tenho como fazer isso. No
entanto, isso pode valer como uma revelação de como certas coisas tão profundas
que nos acontecem no decorrer da vida, nos levam a pensar que estamos à beira
da morte. Na verdade, como relatei, a morte aconteceu inúmeras vezes, mas a
vida, que sabe premiar a vida demonstrando um princípio de aprimoramento,
sempre foi maior e, ao final, me trouxe de presente um ‘eu’ novinho em folha,
mais experiente, consciente e amadurecido, enfim, mais preparado para viver de
um modo diferente.
Se morri é porque deixei definitivamente para trás, tudo
aquilo que já não mais era necessário e essencial à minha vida. ‘Sem esvaziar os entulhos de nossa canoa’,
é quase impossível prosseguir viagem com carga pesada e inútil.
É preciso confiar, pois somente a
Vida
sabe cuidar.